quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

Amor sazonal

Todo mundo já viveu um amor sazonal: aquele de temporada, fulminante, que deixa a perna trêmula e o corpo suando frio. É intenso, mas ele termina tão (ou mais) rápido quanto começou, mesmo que se deseje o contrário. Amor sazonal é tragédia anunciada: tem data de início, mas também prazo de validade.

Amor sazonal é amor cruel, que machuca sempre. Ele cativa, galanteia e sacia por algum tempo, mas apenas o suficiente para dar lugar a uma dependência visceral. Dependência não saciada vira crise. O amor, outrora tão desejado, torna-se tortura. Disfarçada de abstinência, ela lhe consome por meio de um doloroso sentimento de vazio. Amor sazonal é amor torturador, afinal.

Amor sazonal é apenas um gatilho a disparar desejos incompletos. Sem as armas certas, o amor diário e a cumplicidade dos olhares sinceros são alvos inatingíveis. Amor sazonal é paixão sem qualquer concretude, fadada ao comodismo. É amor líquido, que escapa por entre nossos dedos. É platonismo frágil e fajuto.

Trocar os passos seguros de um amor recompensador por um andar cambaleante é mais que impulsividade: é desvario; desperdiçar a chance de espantar a superficialidade e mergulhar na certeza de uma cumplicidade diária, insanidade.

Amor sazonal é apenas uma humilde exclamação em uma sentença sem sujeito aparente. No máximo uma oração saudosista que, apesar de parecer perfeita, não deixa de estar no pretérito. Ignorar a existência de infinitos períodos, no presente e no futuro, é um contrassenso.

Ousemos arriscar além de nossas vontades mais fortuitas! Covardia não é deixar de viver nossos desejos mais imediatos, e sim não ousar estendê-los. Amor sazonal é apenas uma parte (insuficiente) daqueles que não se contentam com a covardia de um travesseiro vazio. Que os amores genuínos permaneçam, no fim das contas.

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Existência, visibilidade e crachá

Não, o Guedes não começou a andar por aí disfarçado
de Groucho Marx.
O Guedes era o típico “introspectivo-sociável” do escritório: trabalhador, mas que não perdia uma boa piada. Não era um frequentador assíduo dos happy hours, mas marcava presença em alguns churrascos após o expediente. Homem bacana, que tinha uma boa relação com todos. Era lembrado com carinho no aniversário e em pequenas conquistas pessoais – como a data em que finalmente conseguiu completar a pós-graduação. Ganhou até festa.

Após três anos (sem férias) convivendo diariamente com as mesmas pessoas, Guedes decidiu abandonar o emprego. A partir daí, começou a perceber que sua existência era condicionada a um crachá com um número de inscrição pendurado no pescoço. A primeira suspeita aconteceu três meses depois de ter pedido demissão, ao avistar um antigo conhecido do trabalho no centro da cidade.

- Ô Pereira! Pereira! – chamou o Guedes, enquanto abanava os braços para o homem de terno a alguns passos dele.

O engravatado olhou e, diante de tanta insistência, caminhou até o antigo companheiro de trabalho.

- Oi. Tudo bem?
- E aí, rapaz! Quanto tempo, hein? Saudades de você. E como está o pessoal?
- O pessoal? Hmm, o pessoal está bem – respondeu o Pereira, meio sem saber quem era aquele homem (e a qual pessoal ele se referia).
- A galera do escritório, Pereira. Como eles estão? E a Flavinha? O Borges continua usando aquelas camisas ridículas? – riu o Guedes.
- Ahhh. Continua, continua – confirma o Pereira, ainda sem saber, ao certo, quem era aquele homem, e como ele conhecia tanto sobre sua vida profissional.
- Então tá. Vê se aparece. Manda um abraço para todo mundo – encerra o Guedes, percebendo que o Pereira não se lembrava dele (ou, ao menos, fingia não se lembrar).
- Pode deixar...

“Só pode ser a barba. Eu não usava barba naquela época. Mas... Será que fico tão irreconhecível assim? Acho que não. Sou apenas eu. De barba.”- pensa o Guedes.

Em outra situação, seis meses depois de pedir demissão do antigo trabalho, encontrou com a Flavinha em uma fila do teatro.

- Flavinha! Que saudade! Quanto tempo, hein? – se entusiasma o Guedes.
- Oooi..!? – responde a Flavinha, reticente.

E a história se repetiu. A Flavinha também não se lembrava do Guedes.

“Devem ter sido meus óculos... Eu quase não ia trabalhar de óculos naquela época. Isso, junto com a barba, deve ter me tornado irreconhecível.” – preferiu imaginar o Guedes.

Semana após semana, o Guedes encontrava com algum antigo companheiro de trabalho. Alguns trabalharam logo ao lado, trocaram comentários pessoais, conselhos, riram nas comemorações de fim de ano. Mas ainda assim não reconheciam o Guedes. Ao passarem por ele na rua, todos pareciam (ou fingiam) não vê-lo. Conveniência social ou distração genuína? (Afinal, o Guedes não tinha se tornado um grande figurão. Largou o emprego apenas porque queria mudar de ares, e continuava com a vidinha classe-média de sempre).

Seria possível que, em tão pouco tempo, tanto tenha mudado na fisionomia dele? O destino mostrou que não. A redenção do Guedes aconteceu quando ele se encontrou com a Julinha, um antigo amor da adolescência. Ele a avistou no supermercado.

- Julinha? – pergunta o Guedes, já meio sem graça.
- Não é possível...! Guedes, é você? Marquinhos Guedes? – se surpreende a mulher, abrindo um largo sorriso.
- Sim, eu mesmo! Quanto tempo... Mas... Como você me reconheceu, hein? – se espanta o Guedes, que já estava se sentindo invisível.
- Ahh, Guedes. Quem realmente deixa marcas na nossa vida nunca é esquecido, né? Aliás, você ficou muito bem de barba e com esses óculos intelectuais – ri a Julinha.
- Realmente... Impossível deixarmos marcas na vida de todo mundo... – autorreflete o Guedes.

O papo seguiu - dessa vez com um contato genuíno e espontâneo, sem burocracias ou falseamentos. Ele era novamente o Guedes, visível (e de barba).

sábado, 6 de setembro de 2014

Preguiça de desfazer as malas

Mauro era do tipo de homem que detestava a logística das viagens. A ideia de comprar as passagens com antecedência, reservar o hotel, montar itinerários, confirmar e rever as datas o aterrorizava. Mas, para ele, pior mesmo era o pânico envolvendo as malas (e sua burocracia sutil). Especificamente o desfazer das malas.

O arrumar da bagagem era um momento imaginativo, contemplativo, mesmo com o medo de se esquecer algum objeto essencial (que depois se mostraria dispensável). A burocracia de dobrar todas as roupas e ajustá-las ao tamanho (sempre insuficiente) das malas era o menor dos problemas, já que a expectativa de conhecer um novo lugar se sobrepunha à morosidade do processo. O suplício começava mesmo era na volta: o cansaço substituindo a euforia da ida, evoluindo para preguiça e se desenvolvendo, por fim, em procrastinação absoluta. Os resultados são conhecidos: malas (re)arrumadas às pressas, com tudo jogado lá dentro de qualquer jeito. Uma zona.

Foi em uma viagem de férias com a família que o maior dilema de Mauro começou.

- Gostei da viagem, mas tô cansado - diz o Mauro, ainda tirando os sapatos na sala de casa.
- Nem me fale. E olha que na metade do tempo você ficou na praia bebendo cerveja – retruca a esposa.
- E quem disse que tomar cerveja não cansa? Principalmente olhando o mar, toda aquela movimentação das ondas. É bonito, mas fica exaustivo depois de algumas horas – explica o Mauro.
- Deixa de ser preguiçoso! Isso porque você não deu sequer uma caminhada até o outro canto da praia. Eu fui até lá com a Julinha duas vezes. Uma beleza.
- Está louca? Já viu a dificuldade que é andar na areia? Meu guarda-sol é que estava uma beleza. A areia entre os dedos...
- Sei... Você não tem jeito, mesmo. Ó, fica aqui com a Julinha que vou tomar um banho. Já volto.
- Tá.

A esposa entrou no chuveiro e o Mauro afundou no sofá, com a Julinha dormindo, ao lado. Ligou a TV e se concentrou numa reportagem sobre os perigos das águas-vivas. “Ainda bem que nem entrei na água”, pensou. Ele ficou ali, remoendo outros argumentos para defender o sedentarismo das férias, enquanto a esposa tomava banho.

Volta a cônjuge.

- Nada como nosso próprio banheiro... Ahhhrr – celebra.
- Nem me fale. Minha vez de aproveitar... – responde o Mauro.
- Hmm, Mauro... As malas ainda estão ali no canto da sala. Leve-as para o quarto, pelo menos!
- Tô indo... Tô indo.

Depois de mais meia hora, foi. Com ele, arrastou as duas malas: uma dele e outra da mulher e da filha. Deixou tudo ao lado do guarda-roupa e seguiu para o banheiro, ainda quente do banho anterior.

***

Passados dois dias do retorno, a mala do Mauro continuava no mesmo lugar. Faltou ânimo para organizar tudo, e o máximo que fez foi tirar de lá algumas peças de roupas sujas, que estavam amontoadas em um cantinho.

- Ei, amor. Você pode pegar para mim aquela camisa listrada? Vou tomar um banho rápido – pede à esposa.
- Está em qual parte do guarda-roupa? Ainda não vi o que você fez por lá depois da viagem – questiona a cônjuge.
- Ainda está na mala, na verdade.
- Na mala? Você nem mexeu na sua mala? – se assusta a esposa, ativando seu senso de organização adormecido.
- Não. Tá tudo lá.
- Mauro... Não vou arrumar nada pra você, hein. Você não tem doze anos – ameaça.
- Eu sei, eu sei. Deu preguiça. Já viu o suplício que é encaixar tudo nos cabides? Ver se precisa passar novamente?
- Ai, Mauro...

Depois de uma semana, nada havia mudado. Foi aí que Mauro começou a questionar qual era a real necessidade de se possuir um guarda-roupa. E tantas roupas. Tudo o que precisava estava ali, na mala, ao alcance das mãos. E ainda havia várias divisórias para o desodorante, lâmina de barbear, umas duas calças e algumas camisas. A vida em uma mala.

Mais alguns dias se passaram, e a esposa flagrou o Mauro guardando as roupas lavadas e passadas na mala – e não no guarda-roupa.

- Vai viajar a trabalho, amor?
- Hmm... Não. Viajar?
- Então para que a mala?

Só aí ele percebeu o que estava fazendo. Mas não parou. Pensou por um minuto, e disse:

- Sabe aquele guarda-roupa maior que você queria? Não precisa se preocupar.
- Você decidiu comprar?
- Não, não. Você pode ficar com minhas duas portas. Se precisar, eu compro uma mala maior.

E arrastou tudo para debaixo da cama. Além de tudo, a mala tinha rodinhas. Vida compacta, prática e eficiente.

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Café da manhã de hotel - parte 2

Clique aqui e leia a parte 1.


***

Acordar cedo para tomar o café do hotel é pior ainda para quem está acima do peso. Imediatamente, ao entrar no salão do café, a pessoa passa a ser vista não como um simples hóspede, mas também como um competidor. O instinto da busca por comida passa a se sobressair, e os hóspedes não começam a gritar e a proteger os próprios pratos apenas por convenção social. Entretanto, a partir daí passam a vigiar (nem sempre secretamente) as novas remessas de pão de queijo e tudo o que você come.

- Olha lá. Por isso está gordo desse jeito...
- É... Já é o terceiro sachê de açúcar, acredita? Cada um tem 20 calorias.
- Com tanta fruta ali na mesa... Pra quê o achocolatado?, se intrometerão.

Não importa o quanto o gordo já emagreceu, ou como foi o sofrimento dietético da semana: ele não tem direito a um café da manhã reforçado em uma eventualidade. Gordo está fadado a ter uma dieta de magro, independente da ocasião. Quando quer aproveitar, precisa se justificar.

- Mas tia... Está incluído na diária. Compenso as calorias comendo só salada no almoço.
- Olha lá, Marcelo. Depois não reclame do resultado na balança – ameaça a tia.
- Ah... O iogurte é light. Olha ali, ó – defende o sobrinho, apontando a placa na bandeja.
- E esses cinco pães de queijo?
- Ihhh. Trouxe pra todo mundo. Nem se eu fosse um dragão comeria tudo isso – se esquiva Marcelo.
- Não quero, obrigada. Já comi umas frutas com cereais – super saudável.

Enquanto isso o Marcelo virava um sachê suspeito no copo de suco.

- Marcelo! Suco de laranja já é doce! – explica a prima.
- É adoçante. Que mal tem?
- Não nos engane, Marcelo. GARÇOM! Isso aqui é adoçante? “Sacarina” é marca de açúcar, daquelas vagabundas? – questiona a tia.
- Tia...

Enquanto isso, a hóspede da mesa ao lado acompanha o debate, enquanto enrola metade de uma rosca doce no guardanapo. “Vou comer mais tarde. Afinal, está incluído”, pensa. Ah, e ela era magra, claro. Escapou dos julgamentos.

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Café da manhã de hotel

Aproveitar esta mesa ou dormir até mais tarde?
Café da manhã de hotel é uma relação de amor e ódio. Você fica perdido em meio a tanta comida, e até seu lado mais otimista desconfia de que tudo aquilo está incluído na hospedagem. A tentação inicial é procurar alguma plaquinha que diga: “Rosquinha extra: R$2. Máximo de quatro panquecas por pessoa” – ou algo equivalente. Fica feliz quando não encontra restrições, naturalmente. Imediatamente, imagina uma espécie de open bar de iogurtes e sucos. E sem 10% do garçom, taxa de consumação, comandas ou o que for.

O lado odioso é precisar seguir o horário do hotel. Não se pode, simplesmente, querer tomar o café às três da tarde. Uma pena. Por isso, tomar café da manhã em hotel exige planejamento prévio. Um cronograma.

- Que horas vam’lá no café da manhã? – pergunta a mulher.
- Amanhã a gente vê – você responde.
- Mas está incluído, Jorge. Está incluído! Não podemos perder o café. Já viu como é bom o café da manhã do hotel? Precisamos decidir o horário para nos planejarmos.

E assim começa a burocratização dos seus momentos de folga.

- Tanto faz, Joana. E se eu quiser dormir até mais tarde?
- Mas Jorge, temos que acordar cedo pra aproveitar o dia – retruca a Joana.
- Eu aproveito o dia dormindo, Joana. Dormir pra mim é ganhar tempo. Aliás, se eu ficar cansado não aproveitarei mesmo o dia. Quem é que consegue sorrir para o sol com os olhos cheios de remela? – poetiza.
- Então precisamos dormir cedo.
- Mas já está tarde...

Impasse.

Depois de tomarem banho, o casal deita na cama.

- Decidiu, Jorge? – questiona a Joana.
- Decidiu o quê? – você mal-humoriza.
- O café, Jorge. Está incluído, lembra?
- Hm. Amanhã a gente decide! Na pior das hipóteses, vamos ali naquela padaria da esquina, almoçamos direto, sei lá. Se preciso, eu passo o dia com um Doritos, mesmo.
- Hmm. Não, Jorge. Pagamos caro... E café de hotel é ótimo! Aquelas panquecas são uma tentação – argumenta a esposa, gesticulando.
- Tentação é dormir.
- Você não tem jeito, Jorge. Então boa noite.
- Boa noite, Joana.

***

Dia seguinte, oito horas da manhã. O telefone do quarto toca e a Joana atende, animada. Era um casal de amigos que também estava no hotel.

-  Oooi, Cláudia. Sim, já vamos descer! Sim, claro. Senão não pegamos um bom café. Um beeeijo.

Desliga o telefone.

- Jorge. Acorda, Jorge.
- Grnhmmmmn.
- Vamos lá, se levante, homem. O pessoal já ligou. Temos que nos aprontar para tomar o café! Está incluído na diária, lembra?
- Nhmmpffn...
- JORGE!

Você acorda.

- Joana... OS SABONETINHOS TAMBÉM ESTÃO INCLUÍDOS E VOCÊ NÃO USA NENHUM DELES! – contesta, pulando da cama.
- É diferente, Jorge. Usaria se fossem comestíveis.
- Não sabia que eu tinha casado com um dinossauro. Que apetite, hein – você ironiza.
- Ihhh. Deixa de conversa. Enquanto eu tomo uma ducha vê se lava esse rosto.
- Zzz.

Feita a toalete, ambos correm e encaram o elevador. Encontram com o casal de amigos.

- Ô Jorge. Melhora essa cara, rapaz. Está cedo, mas sabe como é, né? Está incluído na diária... – explica a cônjuge.
- É, Jorge. E você pode até afanar alguns pãezinhos, heh. – sugere o cônjuge.

O grupo chega ao andar do café da manhã, ainda quase vazio. Você, ainda meio descabelado e tentando se lembrar se trocou a camisa do pijama, pega um pratinho. A partir de então passa a ser um novo Jorge. Uma espécie de... Jorgeossauro. Depois de tanta conversa, decide destruir pelo menos metade dos pãezinhos com sua mandíbula. Ficaria com manteiga besuntada até nas sobrancelhas, e beiraria a overdose com sucos e bolos artificiais. Sua frustração seria doce, afinal.

Antes de chegar à mesa, o saldo é de três pães de queijo e duas rosquinhas já devorados. Afinal, estava tudo incluído. Uma delícia.
___

Clique aqui e leia a parte 2.